segunda-feira, 30 de julho de 2007

A Ètica Zapatista do México

A ÉTICA DO GUERREIRO.
(...)
Reiteramos: lá em cima não há nada que fazer, nem sequer piada.
Por isso estamos hoje aqui com vocês. Porque cremos, e para nós “crer” é um sinônimo de fazer, e “fazer” um sinônimo de “lutar”, e lutar um sinônimo de “sonhar”, que é possível construir outra forma de fazer política, e que seu pilar fundamental é a ética, outra ética.
Antes, trato de explicar que os zapatistas somos guerreiros e guerreiras. E isso não só quer dizer que nos assumimos como lutadores – às vezes na defensiva e às vezes na ofensiva. Também que temos uma ética que pouco ou nada tem a ver com o que se ensina ou se pretende ensinar em aulas, livros ou mesas redondas com explicações incluídas, mas sim com um compromisso.
Nossa posição tem merecido o desprezo e a crítica dos neo-apologistas do indefinível, ou seja, da prática de uma classe política que à lama e sangue que sujam suas mãos, soma agora o cinismo de apresentar sua claudicação como “maturidade”, “modernidade” e “realismo”.
E, que paradoxo, recordo agora que nos ofereceram comodidades para esta mesa quadrada (talvez por isso é despeitada) a nós, que desde que surgimos temos sido os incômodos constantes e sonoros para esse setor do pensamento.
José Martí disse uma vez que o homem verdadeiro não mira de que lado se vive melhor, mas de que lado está o dever.
E o dever, para nós zapatistas, é nossa ética, a ética do guerreiro.
Já antes falei de sua origem, das fontes em que bebemos para ser o que somos e seremos.
Agora, só quero recordar o seguinte:
A ética do guerreiro poderia se resumir nos seguintes pontos:
1. Estar sempre à disposição de aprender e assim fazer. Duas são as palavras fundamentais no andar do guerreiro: “não sei”. Enquanto as “cabeças grandes”, como dissera alguma vez o Comandante Tacho (do EZLN), opinam sobre tudo e pretendem tudo saber, o guerreiro se volta ao desconhecido com a mesma capacidade de admiração que se tem ante algo novo. Quando saímos ao caminho que definimos com a Sexta Declaração (Sexta Declaração da Selva Laconda, definiu pela realização da “Outra Campanha”), não distribuímos juízos e receitas. Escutamos e olhamos para aprender. Não para sobrepor ou dirigir, mas para respeitar. O respeito ao outro, à outra, é como nós dizemos “companheiro”, “companheira”.
2. Estar a serviço de uma causa concreta. Não se trata de lutar por fantasias, nem de enganar-se sobre o inimigo, a batalha, as derrotas, a vitória. Sabemos que há e haverá dores, algumas sem nenhum alívio possível, como a dor da morte de Aléxis Benhumea, nosso companheiro e estudante desta universidade, assassinado pelo governo há exato um ano. E há outros que requerem um paciente cultivo da raiva como é de saber a nossas companheiras e companheiros presos de Atenco: Nacho, Magdalena, Mariana, para mencionar apenas três delas e deles.
Mas sabemos também que essas dores que não cicatrizam têm rumo, destino, final. E que esta grande causa que nos motiva não inibe nem subordina às causas de todos os tamanhos, mas sim que precisamente nelas se materializa.
3. Respeitar aos antecessores. A memória é o alimento vital do guerreiro. A água de onde bebemos é nossa história. Não só como zapatistas, não só como indígenas, não só como mexicanos. Onde outros lêem e repetem derrotas, para assim justificar rendições, nós lemos ensinamentos. Onde outros vêem personagens, líderes e heróis, nós vemos povos inteiros cumprindo a função de professores à distância no tempo, geografia e modo. A história de abaixo não é senão uma imensa memória coletiva.
4. Existir para o bem da humanidade, ou seja, pela justiça. Observe: não disse “para tomar o poder”, nem “para chegar a um cargo público”, nem “para entrar na história”, nem “para desde acima solucionar o de abaixo”. Digo, ao contrário, nomear e trazer para cá a essa outra grande ausente no caminho dos de baixo: a justiça. E não porque ela esteja em alguma banda, escondida, esperando que alguém que se creia iluminado a encontre e venha e nos presenteie, e nossos calendários se encham de monumentos, bustos, estátuas, senão porque é algo que se constrói como se constrói tudo o que nos faz seres humanos, ou seja, em coletivo.
5. Para esta batalha que sabemos difícil, e interminável agregaria eu, devemos dotarmo-nos de armas e ferramentas que nada têm a ver com o que agora se encontra nas páginas de qualquer jornal ou nos noticiários da tv. Armas e ferramentas que não são senão as ciências, as técnicas e as artes. E de todas elas, a da palavra.
Por algumas circunstâncias das quais não falarei agora, os zapatistas tendemos a ver e olhar mundos para os quais não há, todavia, palavras nos dicionários.
Mas, assim como vemos as coisas distantes como se estivessem do outro lado da esquina, vemos as coisas aproximadas e imediatas com a tranqüilidade da distância e o tempo que criamos com nossa própria geografia e nosso próprio calendário.
O mais importante (e o mais esquecido) é que o guerreiro deve cultivar a capacidade de ver adiante, imaginar o todo composto e terminado, prever os altos e baixos do caminho, os contratempos e sua solução. Deve ser sábio na luta, isto é: em determinar quais são os pontos essenciais de uma situação, de onde devem aplicar-se quê esforços e quais combates devem ganhar-se ou perder-se.
O guerreiro deve pôr atenção e dedicação às coisas pequenas e às grandes, às superficiais e às profundas, e traçar assim uma espécie de mapa tridimensional de onde cada parte adquire um sentido preciso segundo lhe dita o todo, e o todo só adquire razão e legitimidade em cada uma de suas partes.
Assim, o guerreiro deve buscar o ritmo, ou seja, a harmonia entre todas as partes. E não a velocidade que termina por deixar o importante para atender o urgente.
Em nossa ética, então, se trata de não pensar indignamente, para não atuar desonestamente. Aprender sempre, sempre preparar-se, conhecer todos os caminhos possíveis, seus passos, suas velocidades, seus ritmos. Não para por todos andar, senão para saber de todos, com todos caminhar e chegar com todos.
Não é ao hoje, ao imediato, ao efêmero, que vemos. Nosso olhar chega mais longe. Até acolá, de onde se vêem a um homem ou a uma mulher qualquer, despertar-se com a nova e terna angústia de saber que devem decidir sobre seu destino, que caminham pelo dia com a incerteza que vem da responsabilidade de encher de conteúdo a palavra “liberdade”.
Até acolá miramos, até o tempo e o lugar onde alguém presenteia algo a alguém. E é tão longe que não se consegue distinguir se é uma flor vermelha ou uma estrela ou um sol o que de uma a outra mão se estende.
Nossa ética tem esse destino.
Não só por isso, mas também por isso, é que sabemos que vamos vencer...
Muito obrigado.
Desde o auditório Che Guevara, na outra Cidade Universitária UNAM (Universidade Nacional Autônoma do México).
Subcomandante Insurgente Marcos.
México, junho de 2007.

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